Tinha chegado o momento de muitos voltarem à terra. Queriam rever a cidade na qual cresceram e, ou, se, fizeram homens e, ou, se, mulheres também. A paz tinha chegado, esboçava-se algum desenvolvimento, a iniciativa privada era bem aceite, alguns (muito poucos, é certo) obstáculos burocráticos aliviavam (diretamente ou por corrupção de funcionários). Com isso criaram-se condições mínimas, não para visitas turísticas, mas para breves visitas de reencontro com a terra amada. E por aí vinham todos, uns por terra com jipes e muitos adereços de riqueza, outros por avião com seus tiques de meninos finos da Europa e arredores. Todos declamando suas excelências.
Eu tinha, entretanto, chegado, com o projeto de estruturar um curso de licenciatura em Linguística-Português (usando a nomenclatura dominante na Universidade Agostinho Neto, nesse tempo ainda a única do país). Embora desaconselhado por vários amigos (acho que foram sinceros e certeiros - eles sugeriam-me ficar em Luanda) quis reinstalar-me em Benguela - a nossa Ombaka. Pretendia tomar o pulso ao dia-a-dia da cidade nos novos tempos e dar ali o meu contributo para o Ensino e a Literatura em Angola. Não vou, por agora, tocar mais nesse assunto. Só falei nele para explicar que estava ali, instalado com a família mínima (mulher e filha mais nova), tentando redesenhar dias futuros na minha cidade.
Alguns, dos que vinham para matar saudades, espreitaram oportunidades para se reinstalarem também. A maioria com negócios. As pessoas aterravam, logo ao reencontrarem um amigo de infância, ou de adolescência, perguntavam-lhes: e qual o teu negócio? Não "negócio" no sentido quotidiano da palavra no Brasil, mas no sentido próprio: negoceias em quê? Vendes e compras o quê? A maioria, tal como eu, foi-se embora ao fim de uns anos, graças ao agravamento da crise económica, social e política, fechando o cenário do futuro para os nossos filhos.
As maneiras e possibilidades de tornar a viver ali variavam muito, sobretudo com o grau de acompanhamento das coisas da terra, que fomos tendo (ou não tendo) nos autênticos exílios em que as nossas fugas desaguaram. Mas, entre os que só visitavam e os que tentaram ficar, havia um comportamento em comum. Conforme iam encontrando e reencontrando gente, apressavam-se a mencionar a família, para identificação mais fácil, algum episódio de infância que os tornara mais conhecidos entre os amigos e diziam no que se tinham tornado, realçando naturalmente o que parecia valorizado no meio. Por vezes, quem os recebia resumia também a sua biografia curricular.
O tique (chamando-lhe assim) chegava a tal ponto que, logo ao serem apresentadas duas pessoas, uma declamava imediatamente o melhor do seu currículo para a outra, mostrava os medalhões, as condecorações, o relógio caro, o bem-estar, alguma heroica cicatriz, os diplomas e especializações e, sendo o caso, o grau alcançado na maçonaria, no sindicato, na universidade, no partido político do país de onde vieram. Quando muito, em se tratando de 'brasileiros', o clube de futebol, a escola de samba e as glórias da vadiagem, dos namoros, ou da iniciativa empresarial...
Alguns tinham mesmo saído, a partir de 1975, vangloriando-se 'lá fora' dos mesmos currículos um tanto imaginários, um tanto hiperbólicos, um tanto anabólicos também - pois era conveniente adaptar as glórias e riquezas à semiosfera de receção.
Estes procedimentos, dos quais discretamente me ria, são porém comuns. Em Portugal fazem-se, na maioria dos casos, com maior 'moderação', 'subtileza', timidez aparente, recato estudado. No Brasil não sei se há maioria de procedimento, mas encontramos os tipos todos. Entre nós, como se sabe, às vezes um jovem ainda não desceu da mota (do kupapata, se preferem) e, mesmo estendendo-nos o braço devidamente curvado, com a mão a segurar o cotovelo, desfia tão logo possa o seu recente CV, se adequado à situação.
A mania, claro, não é só de jovens. Até mesmo muitos mais velhos e, para todas as idades, aquela famosa frase provinciana serve: "você sabe quem eu sou?", "sabes com quem estás a falar?". Otsho, otsho muenle (entendi, entendi bem [mesmo] - a grafia é minha e procura ser fiel à voz). Então, vinha dali um currículo, geralmente assustador, poderosíssimo, devastador e galhardamente sobranceiro, dito por cima de uns óculos caros para a audiência que somos nós, em baixo, respeitosos e servis.
Nessa nova fase (dos anos 2000 até quase hoje), quando visitava Benguela das primeiras vezes (desde 1992 que não visitava a cidade), sediando-me em Luanda pelo tempo que estivesse em Angola (que não visitava desde 1994), havia figuras que se cruzavam comigo e, por interesses ou por afinidades, íamos conversando, ora em Luanda, ora em Benguela. Recordo-me de um deles, quando eu via a possibilidade de também trabalhar em colégios, que me recebeu com muita simpatia, naturalidade, cordialidade, em Benguela, já depois de nos conhecermos de Luanda. Instalava-se numa das residências do Banco Nacional antes de comprar uma casa própria; era amigo e familiar de pessoas bem colocadas na Igreja, no Estado e no Partido, mas essencialmente aquele tipo (hoje diríamos 'brasileiro') de pessoa de muito boa conversa, que rapidamente e com simpatia nos põe o jogo na mesa. Vi personagens assim no Egito, num voo e em um bar de hotel. Detive-me a observá-las para me certificar das semelhanças. Esse comportamento, afinal, era tão 'brasileiro' quanto 'angolano' quanto 'egípcio'. No caso, o dono do colégio, descendente das mais ilustres famílias angolenses. Quando me levou a visitá-lo, recitou uma apresentação logo na porta de entrada: este é o colégio XY, tem tais e tais características, tudo muito bom e eu sou o XY. O resto eu já sabia de Luanda e de velhos papéis guardados em bibliotecas estrangeiras.
Continuava a rir-me interiormente ao escutar essas apresentações e reconheço, mais uma vez, a simpatia, cavalheirismo, cordialidade com esse nosso compatriota falava. Não por cinismo. Por educação e respeito, que também me faziam não rir na cara das pessoas. E também não me ria por depreciar o comportamento, pois era geralmente concretizado com simpatia, alguma alegria, elegância, sem caras fechadas e arrogantes, hoje tão comuns. Era agradável de ouvir, mas fazia-me rir porque me parecia uma estratégia, para usar as palavras de um avô, contraproducente.
Chegou, porém, um momento em que me cansei. Repetia-se tanto a autobiografia, mais ou menos curricular, que a paciência se esgotava. Pus-me a pensar: as pessoas agem assim porquê?
Na verdade, é um comportamento antigo e natural. Quando chegamos a um lugar onde não nos conhecem (ou não nos reconhecem), fazemos a nossa apresentação. Mas fazíamos sem abuso nem exagero, porque o exagero caía mal - o que deixou de acontecer. Lembro-me de que, naquela cidade, sempre foi comum perguntarem-nos quem éramos, querendo com isso dizer a que família pertencíamos e o que trabalhávamos.
Em sociedades informais, a comunicação rápida do melhor do nosso currículo pode agilizar uma oportunidade. Por isso mantém-se a prática. Fui me lembrando, com o tempo, não só da nossa cidade, mas também do mato e das aldeias. Os portugueses também, nas aldeias, faziam o mesmo tipo de pergunta e convinha estarmos preparados para a resposta (quem éramos, isto é, a que família pertencíamos e qual a posição nela; porque estávamos ali; quem tinha vindo connosco). Em muitos países - como por exemplo no Brasil - passa-se o mesmo quando começa um forasteiro a repetir a sua presença nos locais quotidianos. É, portanto, um comportamento natural, compreensível e que estabelece, à partida, um pequeno pacto social - provisório, sem dúvida.
Os angolanos, quando alguém vem de outra região e se faz anunciar, ou chega simplesmente a uma nova aldeia, quimbo (kimbu), sanzala, tem de se apresentar. Diz de onde vem, qual a família, o que a caracteriza e a ele e porque está ali. Ou seja: a gente faz uma identificação para, a partir dela, iniciar relações humanas alargadas.
As manipulações identitárias partem disto para prejudicar e manipular isto, exigindo que nos identifiquemos politicamente, racialmente, sexualmente, etc.. Transformam um hábito saudável e comum numa espécie de comparência obrigatória ao tribunal dos outros. E policiam as identificações, não como fariam os aldeões ou os empregadores, mas como diretores de consciência política, ou seja, como agentes totalitários. Motivos para descartarmos pessoas assim...
Benguela era uma cidade de loucos, em tempos idos - hoje é uma cidade de insensatos e de espertezas matumbas. Tinha fama disso até há poucos anos (uma década? Duas?). Realmente havia ali personagens excêntricas, muitas delas do setor colonial ou intermédio, mas a 'loucura' era transversal. Havia 'loucos' excêntricos, uns raros tarados (há em todas as cidades) e loucos mesmo, no sentido comum, quotidiano, da palavra. Vários estavam identificados e internados no manicómio da cidade, junto ao hospital, em tempos coloniais (a realidade soltou-os).
Um deles vinha de Caconda, ou Kakonda ou qual variação mais queiram ver. Costumávamos encontrá-lo na então rua 31 de janeiro (possivelmente em outras também, mas sempre ali) e alguns de nós o provocavam, com a maldade ingénua dos adolescentes; outros riam, outros olhavam estupefactos. Vestia-se misturando calças, camisa, andrajos de velhos cambriquitos e de casacos em fase de extinção. Sentia sempre no corpo a mesma temperatura, pois não tirava roupa quando fazia mais calor. Arrastava consigo um pequeno saco, talvez com pertences pessoais. Era pobre e louco. Mesmo pobre e mesmo louco. Isso nos fazia impressão, pelo que uns riam, outros assustavam-se, outros o desafiavam e fugiam logo se ele reagisse.
Falava assim:
Eu sou João Batista, filho de Caconda, meu pai tem muitos bois, minha mãe tem muitas vacas...
e o discurso prosseguia nessa linha curricular autobiográfica e genealógica. Não era tão louco assim. Era mesmo filho de muitos bois e de muitas vacas, era mesmo oriundo de Caconda e estava internado (quando estava) no manicómio ali perto.
Nós todos fazemos o mesmo: polidamente quando enviamos um currículo pedindo emprego; menos polidamente nas outras ocasiões - ou com subtileza perante os 'chefes' mais 'educados'.
E ainda hoje retinem nos ouvidos da memória aquelas frases "mas tás a ver quem eu sou, né?", "ê pá eu, depois de sair daqui, fui...", "eu sou vice-presidente de", "sou grau 32 de", fui "chefe de", "a filha do meu patrão apaixonou-se por mim", "este é o colégio XY e eu sou o X e o Y". Os velhos colonos, embebidos no mito do pioneirismo, também faziam isso: "fui o primeiro aqui a...".
Entretanto, pessoas sem qualquer currículo com ponta por onde se pegue, ou mesmo completa e reconhecidamente sujo, tornam-se altas eminências, governam país (Angola) como países (...) e nós ficamos boamados, boquiabertos, a olhar para o Palácio. Não temos o currículo afirmativo e livre de João Batista.