sábado, 2 de março de 2024

Dia da Mulher Angolana

 

Celebra-se hoje, 2 de março. Porque nesse dia foram presas cinco militantes mulheres e mais penso que três homens. Lutavam contra o colonialismo tentando implantar uma 'região' (a famosa 1ª) militar ou libertada que implicava a passagem por zonas controladas pela FNLA e pelo seu GRAE (Governo Angolano Revolucionário no Exílio). A prisão deu brado, foi denunciada por muitos internacionalistas em todo o mundo e, na própria RDC, Tchisekedi interpelava um colega ministro sobre o assunto, chamando-lhe a atenção para que a FNLA e o GRAE se comportavam como 'um Estado dentro do Estado'. 

Deolinda Rodrigues, a mais conhecida hoje dessas cinco militantes, escrevia poemas revolucionários, cartas mais interessantes que os poemas (incluindo uma correspondência com Martin Luther King) e um diário vibrante, que foi o seu confessionário mais fiel, até com posições indefensáveis, tanto quanto as mais avançadas. Entre os parágrafos mais avançados recordo aqueles em que se queixava do machismo no MPLA e da insistência de dirigentes do 'M' para que ela casasse e procriasse. Seu nome completo: Deolinda Rodrigues Francisco de Almeida. A partir do nome próprio, como é natural, os outros três são significativos do seu berço social, aquela zona entre Luanda e Malanje na qual se forjou uma identidade angolense, entre étnica e trans-étnica, entre racializada e antirracista, que marcou bastante o grupo decisor do MPLA até hoje, ou quase. Por exemplo "Frncisco de Almeida" (como sobrenome) desdobra-se em várias páginas do Boletim oficial do governo geral de Angola na segunda metade do século XIX.

Milagrosamente um saco cheio de papéis-espólio da militante foi guardado e, mais tarde, entregue a Roberto de Almeida, irmão de Deolinda, que depois, oportunamente, publicou penso que a maioria desses escritos, em livros hoje esgotados e sem versão digital. 

No dia 2.3.1971, comemorando o "quarto aniversário da prisão das cinco militantes heroicas do MPLA e da OMA, Deolinda Rodrigues, Irene Cohen, Engrácia dos Santos, Tereza Afonso e Lucrécia Paim", o DIP (Depart. Informação e Propaganda) lançou um datiloscrito evocando o que se passou, incluindo duas citações (uma de "c. a." - talvez Costa Andrade; outra de Agostinho Neto) e quatro poemas militantes de Deolinda Rodrigues. 

A capa é sintomática. No centro alargado uma figura de guerrilheiro, com arma ao ombro e o braço esquerdo apontando o rumo. Quer dizer: o homem, jovem mas com barba, indicando o caminho a seguir pelas mulheres, baseado (pensa-se) no exemplo destas heroínas. Não são elas, no dia que o futuro partido único instituiu como o das "mulheres angolanas", não lhes foi reconhecido pelo DIP e pelo 'Movimento' que apontassem o rumo, nem em nome delas qualquer outra mulher de destaque na luta de libertação, no combate por Angola, na cultura angolana. Era ao homem que tal papel estava reservado, no presente e no futuro. Elas nem sequer aparecem no 'pano de fundo', no cenário, que de resto inexiste. 

Felizmente a posição da mulher no MPLA - e muito graças à sua capacidade política interna - foi sendo reconhecido, embora nunca ao ponto de alguma se atrever a candidatar-se à presidência pelo partido - como sucede na UNITA e na FNLA e em quase todos os outros partidos, com a já longínqua exceção, corajosa, de Anália da Victória Pereira (Simeão) e do seu PDL (Partido Democrático Liberal). 

O documento de 1971 não deixou, porém, de ser sintomático do pensamento que dominava o partido até hoje no poder e, por vontade própria, perenemente, custe o que e o quanto custar. O 2 de março ficou sendo o dia da mulher angolana para a OMA e o MPLA. Havia outras datas que podiam ter servido, ou, melhor que tudo, manter a data mundializada, que não criaria divisões internas nem as acentuaria, fazendo por outro lado Angola participar claramente na luta pela emancipação feminina. O 'Partido' fez o oposto: vincou por esse dia a memória das que foram presas e mortas pelo inimigo interno, criando uma data divisora, não reunificadora. Devia e deve manter-se até hoje, e para o futuro, a memória desse lamentável incidente, exemplo a todos os títulos negativo. Mas, apesar do crime da FNLA, não podia ser esse o dia nacional da mulher angolana, porque essas mulheres, embora heroínas e mártires, apenas representavam uma das facções em luta pela independência e, depois, em luta pelo poder durante a guerra civil. 

Impor uma data partidária como data nacional é prática típica dos sistemas totalitários de partido único (ou único na prática, pois há vezes - como na URSS - em que deixam formalmente existir partidos que só dão sinal público para apoiar o único). É, também, no nosso caso, petrificar e impor o apartheid ideológico e étnico sob o domínio do qual Angola ficou refém de um grupo sectário. Ignorando a prestação das mulheres 'dos outros', o contributo 'dos outros', e os crimes do partido no poder contras 'as outras' (bem como contra algumas das do seu campo), o MPLA está a dizer aos angolanos: conosco não vão mexer, isto é nosso. 

Não há razão para que, depois de tantos anos afirmando os valores da democracia - mera formalidade - o MPLA não tenha percebido a absoluta necessidade, a obrigatoriedade, de escolher datas nacionais que realmente o sejam. Mantendo as datas partidárias como nacionais, neste como em como em outros casos igualmente já denunciados pelos partidos oposicionistas, o poder angolano e seu partido único demonstram que, de facto, não pretendem mais do que reduzir Angola à 'sua' Angola e nem sequer reconhecem que a tal 'sua' também já não é única hoje (felizmente). Angola ficou refém 'deles'.

 

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Nada de novo em Angola

 

O MPLA ganhou as eleições que não ganhou. A UNITA pagará cara a sua rebeldia por ter entregue 'votos falsos' (os verdadeiros: os que se contaram oficialmente). Os jovens, ou se venderão para depois confundirem os companheiros, ou estão condenados ao nada, quando muito ao exílio na velha Europa, como quase sempre, no país colonial ou nos outros capitalistas e burgueses. Os países mais fortes irão continuar a subtrair riquezas corrompendo a elite, que desde o século XIX sabe muito bem o que eles querem. Nada muda em Angola com esse partido que, desde 1975, raptou a independência. Nada muda entre as nações desunidas em competição pela lua.



domingo, 8 de maio de 2022

A campanha do dinheiro

Há duas atitudes claras e contrapostas na atual campanha eleitoral angolana. Uma de reforço de entusiasmo pela mudança, estimulação positiva, compreensão do processo político pelo seu dinamismo e pela possibilidade de crescimento. Já sabemos qual é. 

A outra também sabemos, agora tem no entanto uma nova particularidade. Já antes essa estratégia 'retórico-social' era usada, mas dissimuladamente no que diz respeito aos discursos de campanha: com a população na miséria, exibir a riqueza que viria da filiação ao partido e da submissão às estratégias do poder real. 

Antes isso era criticado e os desse lado procuravam disfarçar, mas agora perceberam que, se o povo está na miséria, mesmo que em consequência da má governação, devemos acenar-lhe com a nossa riqueza, para que ele vote em nós pensando que vai ter a sua esmola. Então, 'miúdas bonitas', 'marido bonito', o relógio caro e dourado a brilhar ao sol, a pulseira cara, a roupa cara, carros e jipes topo de gama, tudo a mostrar que há riqueza no país e está, sim, nas mãos do MPLA e, portanto, quem quer desfrutar dela tem de ficar também nas mãos do MPLA. 

Mas desde 1975 que muita gente pobre continua nas mãos do MPLA. Acorda, irmão! 



sábado, 8 de janeiro de 2022

O currículo de João Batista


Tinha chegado o momento de muitos voltarem à terra. Queriam rever a cidade na qual cresceram e, ou, se, fizeram homens e, ou, se, mulheres também. A paz tinha chegado, esboçava-se algum desenvolvimento, a iniciativa privada era bem aceite, alguns (muito poucos, é certo) obstáculos burocráticos aliviavam (diretamente ou por corrupção de funcionários). Com isso criaram-se condições mínimas, não para visitas turísticas, mas para breves visitas de reencontro com a terra amada. E por aí vinham todos, uns por terra com jipes e muitos adereços de riqueza, outros por avião com seus tiques de meninos finos da Europa e arredores. Todos declamando suas excelências. 

Eu tinha, entretanto, chegado, com o projeto de estruturar um curso de licenciatura em Linguística-Português (usando a nomenclatura dominante na Universidade Agostinho Neto, nesse tempo ainda a única do país). Embora desaconselhado por vários amigos (acho que foram sinceros e certeiros - eles sugeriam-me ficar em Luanda) quis reinstalar-me em Benguela - a nossa Ombaka. Pretendia tomar o pulso ao dia-a-dia da cidade nos novos tempos e dar ali o meu contributo para o Ensino e a Literatura em Angola. Não vou, por agora, tocar mais nesse assunto. Só falei nele para explicar que estava ali, instalado com a família mínima (mulher e filha mais nova), tentando redesenhar dias futuros na minha cidade. 

Alguns, dos que vinham para matar saudades, espreitaram oportunidades para se reinstalarem também. A maioria com negócios. As pessoas aterravam, logo ao reencontrarem um amigo de infância, ou de adolescência, perguntavam-lhes: e qual o teu negócio? Não "negócio" no sentido quotidiano da palavra no Brasil, mas no sentido próprio: negoceias em quê? Vendes e compras o quê? A maioria, tal como eu, foi-se embora ao fim de uns anos, graças ao agravamento da crise económica, social e política, fechando o cenário do futuro para os nossos filhos. 

As maneiras e possibilidades de tornar a viver ali variavam muito, sobretudo com o grau de acompanhamento das coisas da terra, que fomos tendo (ou não tendo) nos autênticos exílios em que as nossas fugas desaguaram. Mas, entre os que só visitavam e os que tentaram ficar, havia um comportamento em comum. Conforme iam encontrando e reencontrando gente, apressavam-se a mencionar a família, para identificação mais fácil, algum episódio de infância que os tornara mais conhecidos entre os amigos e diziam no que se tinham tornado, realçando naturalmente o que parecia valorizado no meio. Por vezes, quem os recebia resumia também a sua biografia curricular. 

O tique (chamando-lhe assim) chegava a tal ponto que, logo ao serem apresentadas duas pessoas, uma declamava imediatamente o melhor do seu currículo para a outra, mostrava os medalhões, as condecorações, o relógio caro, o bem-estar, alguma heroica cicatriz, os diplomas e especializações e, sendo o caso, o grau alcançado na maçonaria, no sindicato, na universidade, no partido político do país de onde vieram. Quando muito, em se tratando de 'brasileiros', o clube de futebol, a escola de samba e as glórias da vadiagem, dos namoros, ou da iniciativa empresarial... 

Alguns tinham mesmo saído, a partir de 1975, vangloriando-se 'lá fora' dos mesmos currículos um tanto imaginários, um tanto hiperbólicos, um tanto anabólicos também - pois era conveniente adaptar as glórias e riquezas à semiosfera de receção. 

Estes procedimentos, dos quais discretamente me ria, são porém comuns. Em Portugal fazem-se, na maioria dos casos, com maior 'moderação', 'subtileza', timidez aparente, recato estudado. No Brasil não sei se há maioria de procedimento, mas encontramos os tipos todos. Entre nós, como se sabe, às vezes um jovem ainda não desceu da mota (do kupapata, se preferem) e, mesmo estendendo-nos o braço devidamente curvado, com a mão a segurar o cotovelo, desfia tão logo possa o seu recente CV, se adequado à situação. 

A mania, claro, não é só de jovens. Até mesmo muitos mais velhos e, para todas as idades, aquela famosa frase provinciana serve: "você sabe quem eu sou?", "sabes com quem estás a falar?". Otsho, otsho muenle (entendi, entendi bem [mesmo] - a grafia é minha e procura ser fiel à voz). Então, vinha dali um currículo, geralmente assustador, poderosíssimo, devastador e galhardamente sobranceiro, dito por cima de uns óculos caros para a audiência que somos nós, em baixo, respeitosos e servis. 

Nessa nova fase (dos anos 2000 até quase hoje), quando visitava Benguela das primeiras vezes (desde 1992 que não visitava a cidade), sediando-me em Luanda pelo tempo que estivesse em Angola (que não visitava desde 1994), havia figuras que se cruzavam comigo e, por interesses ou por afinidades, íamos conversando, ora em Luanda, ora em Benguela. Recordo-me de um deles, quando eu via a possibilidade de também trabalhar em colégios, que me recebeu com muita simpatia, naturalidade, cordialidade, em Benguela, já depois de nos conhecermos de Luanda. Instalava-se numa das residências do Banco Nacional antes de comprar uma casa própria; era amigo e familiar de pessoas bem colocadas na Igreja, no Estado e no Partido, mas essencialmente aquele tipo (hoje diríamos 'brasileiro') de pessoa de muito boa conversa, que rapidamente e com simpatia nos põe o jogo na mesa. Vi personagens assim no Egito, num voo e em um bar de hotel. Detive-me a observá-las para me certificar das semelhanças. Esse comportamento, afinal, era tão 'brasileiro' quanto 'angolano' quanto 'egípcio'. No caso, o dono do colégio, descendente das mais ilustres famílias angolenses. Quando me levou a visitá-lo, recitou uma apresentação logo na porta de entrada: este é o colégio XY, tem tais e tais características, tudo muito bom e eu sou o XY. O resto eu já sabia de Luanda e de velhos papéis guardados em bibliotecas estrangeiras.

Continuava a rir-me interiormente ao escutar essas apresentações e reconheço, mais uma vez, a simpatia, cavalheirismo, cordialidade com esse nosso compatriota falava. Não por cinismo. Por educação e respeito, que também me faziam não rir na cara das pessoas. E também não me ria por depreciar o comportamento, pois era geralmente concretizado com simpatia, alguma alegria, elegância, sem caras fechadas e arrogantes, hoje tão comuns. Era agradável de ouvir, mas fazia-me rir porque me parecia uma estratégia, para usar as palavras de um avô, contraproducente.

Chegou, porém, um momento em que me cansei. Repetia-se tanto a autobiografia, mais ou menos curricular, que a paciência se esgotava. Pus-me a pensar: as pessoas agem assim porquê? 

Na verdade, é um comportamento antigo e natural. Quando chegamos a um lugar onde não nos conhecem (ou não nos reconhecem), fazemos a nossa apresentação. Mas fazíamos sem abuso nem exagero, porque o exagero caía mal - o que deixou de acontecer. Lembro-me de que, naquela cidade, sempre foi comum perguntarem-nos quem éramos, querendo com isso dizer a que família pertencíamos e o que trabalhávamos. 

Em sociedades informais, a comunicação rápida do melhor do nosso currículo pode agilizar uma oportunidade. Por isso mantém-se a prática. Fui me lembrando, com o tempo, não só da nossa cidade, mas também do mato e das aldeias. Os portugueses também, nas aldeias, faziam o mesmo tipo de pergunta e convinha estarmos preparados para a resposta (quem éramos, isto é, a que família pertencíamos e qual a posição nela; porque estávamos ali; quem tinha vindo connosco). Em muitos países - como por exemplo no Brasil - passa-se o mesmo quando começa um forasteiro a repetir a sua presença nos locais quotidianos. É, portanto, um comportamento natural, compreensível e que estabelece, à partida, um pequeno pacto social - provisório, sem dúvida. 

Os angolanos, quando alguém vem de outra região e se faz anunciar, ou chega simplesmente a uma nova aldeia, quimbo (kimbu), sanzala, tem de se apresentar. Diz de onde vem, qual a família, o que a caracteriza e a ele e porque está ali. Ou seja: a gente faz uma identificação para, a partir dela, iniciar relações humanas alargadas. 

As manipulações identitárias partem disto para prejudicar e manipular isto, exigindo que nos identifiquemos politicamente, racialmente, sexualmente, etc.. Transformam um hábito saudável e comum numa espécie de comparência obrigatória ao tribunal dos outros. E policiam as identificações, não como fariam os aldeões ou os empregadores, mas como diretores de consciência política, ou seja, como agentes totalitários. Motivos para descartarmos pessoas assim...

Benguela era uma cidade de loucos, em tempos idos - hoje é uma cidade de insensatos e de espertezas matumbas. Tinha fama disso até há poucos anos (uma década? Duas?). Realmente havia ali personagens excêntricas, muitas delas do setor colonial ou intermédio, mas a 'loucura' era transversal. Havia 'loucos' excêntricos, uns raros tarados (há em todas as cidades) e loucos mesmo, no sentido comum, quotidiano, da palavra. Vários estavam identificados e internados no manicómio da cidade, junto ao hospital, em tempos coloniais (a realidade soltou-os). 

Um deles vinha de Caconda, ou Kakonda ou qual variação mais queiram ver. Costumávamos encontrá-lo na então rua 31 de janeiro (possivelmente em outras também, mas sempre ali) e alguns de nós o provocavam, com a maldade ingénua dos adolescentes; outros riam, outros olhavam estupefactos. Vestia-se misturando calças, camisa, andrajos de velhos cambriquitos e de casacos em fase de extinção. Sentia sempre no corpo a mesma temperatura, pois não tirava roupa quando fazia mais calor. Arrastava consigo um pequeno saco, talvez com pertences pessoais.  Era pobre e louco. Mesmo pobre e mesmo louco. Isso nos fazia impressão, pelo que uns riam, outros assustavam-se, outros o desafiavam e fugiam logo se ele reagisse. 

Falava assim: 

Eu sou João Batista, filho de Caconda, meu pai tem muitos bois, minha mãe tem muitas vacas... 

e o discurso prosseguia nessa linha curricular autobiográfica e genealógica. Não era tão louco assim. Era mesmo filho de muitos bois e de muitas vacas, era mesmo oriundo de Caconda e estava internado (quando estava) no manicómio ali perto. 

Nós todos fazemos o mesmo: polidamente quando enviamos um currículo pedindo emprego; menos polidamente nas outras ocasiões - ou com subtileza perante os 'chefes' mais 'educados'. 

E ainda hoje retinem nos ouvidos da memória aquelas frases "mas tás a ver quem eu sou, né?", "ê pá eu, depois de sair daqui, fui...", "eu sou vice-presidente de", "sou grau 32 de", fui "chefe de", "a filha do meu patrão apaixonou-se por mim", "este é o colégio XY e eu sou o X e o Y". Os velhos colonos, embebidos no mito do pioneirismo, também faziam isso: "fui o primeiro aqui a...". 


Entretanto, pessoas sem qualquer currículo com ponta por onde se pegue, ou mesmo completa e reconhecidamente sujo, tornam-se altas eminências, governam país (Angola) como países (...) e nós ficamos boamados, boquiabertos, a olhar para o Palácio. Não temos o currículo afirmativo e livre de João Batista. 


terça-feira, 28 de maio de 2019

BNA baixa taxa de juro em Luanda


... para 15,50% (estava, ultimamente, em 15,75%). Segundo o jornal Valor económico, desde Maio de 2018 a taxa reduziu de 18% para o valor atual. É bom, sem dúvida, mas pouco. As economias, para se desenvolverem, precisam de taxas de juro baixas e isto é básico, não precisamos de diplomas académicos para saber. 

É um facto que uma taxa de juro muito baixa pode-nos trazer implicações negativas, igualmente conhecidas. Isso, porém, se dá a um nível muito mais baixo do que está agora em discussão e em economias com perfis diferentes da nossa. 

Aguardemos que se abandone a política asfixiante do juro alto, que de resto vem já... da instalação do Banco Nacional Ultramarino em Angola.



domingo, 19 de maio de 2019

Uma federação em Angola?



Há muitos anos que falo no federalismo como hipótese a considerar no desenho do futuro Estado angolano. Quando comecei a falar nisso, mais em recato, com amigos ou próximos, as reações não foram muito acolhedoras. O medo de desmembramento do Estado e de soltura das mil cabeças do tribalismo via na Federação o caminho para a erosão do próprio país. Em parte, ele tinha justificação e, por isso, eu me calava muitas vezes.

É certo que as fronteiras criadas sobre a rasura colonial das antigas nações atormentará sempre qualquer conceção do Estado em África. Todas as hipóteses, porém, devem ser postas sobre a mesa, desde que sejam discutidas com fundamento e rejeitadas quando não se tornem consensuais (em ambiente de livre discussão).

O que me parecia, desde então (mais especificamente: desde a segunda metade dos anos 80 do século passado), era que a solução monopartidária e ideológica rapidamente se esgotaria, enterrando consigo o conceito de nação que fundamentava. Aliás, o modelo de regime e de sistema político não tinha sido, sequer, votado pelo povo em liberdade. Como todos sabemos, a sua constituição resultou simplesmente das vitórias militares que um dos partidos armados foi somando sobre os outros com o apoio maciço de Cuba e, menos maciço mas não menos decisivo, da URSS. Uma parte do povo (não se sabe que percentagem) ficara realmente fora disso por opção, não concordava com o modelo, socialista, de partido único e de absoluta centralização administrativa. Uma significativa fatia da população angolana não sentiu essa opção como sua nem ninguém lhe perguntou o que sentia.

Entre amigos que eram confessos opositores civis do regime e do sistema, ainda assim uma reação prudente se impunha quando falássemos em federalismo. Porém me pareceu, desde sempre, que a solução federativa para Angola pode ocorrer evitando os perigos de desmembramento do país e, por outro lado, já nesse tempo me parecia que as tensões que viriam se podiam resolver, ou desarmar, através de uma república federal cautelosamente concebida.

A força dos problemas de cada região parece-me impor a solução federativa, conhecida por outros países africanos que não se evaporaram ainda, mesmo com a tentativa de secessão do Biafra na Nigéria. Quando foram as eleições de 1992, podíamos ter dado um passo, caso o regime aceitasse a nomeação dos governadores provinciais em função  das maiorias locais. O espectro da guerra e, mais uma vez, da desagregação do Estado – apesar de, manifestamente, a UNITA não estar interessada em ficar só com uma parte do país – serviram de alibi para rejeitar a pretensão desse partido, que em tal ponto era justa, justíssima. A guerra, como dolorosamente sabemos, veio a grassar à mesma (estaria, se não programada, pelo menos prevista por ambas as partes) e com sentimentos recrudescidos pela negativa dada à pretensão de o partido vencedor em cada província governar – embora subordinado ao poder central – essa mesma província. Realmente, porque havia de ser governada por um militante do partido derrotado nas urnas uma província de maioria da oposição? Porque havia, também, de se impor, aos concelhos onde a oposição detinha clara maioria, administradores nomeados pelo partido derrotado nesses concelhos? As populações então perceberam que o seu voto não servia para nada, fora tudo só uma farsa imposta por fora.

Caso tivéssemos adotado (ou, se preferem, adoptado) a solução proposta nesses anos, ao mesmo tempo em que formávamos forças armadas nacionais (e, portanto, desarmávamos as FALA), hoje teríamos governações regionais e tal facto iria, certamente, esbater as tensões étnicas que se avizinhavam, continuando hoje a agravar-se. Porque, nessa altura, não se tratava de uma Federação, nem sequer de uma regionalização programática, mas somente de deixar que a vontade expressa pelo povo de cada província fosse respeitada nessa província – aceitando, a nível nacional, a maioria nacional. Isso era, sem dúvida, melhor do que muito do que se vem propondo agora - quer por parte do governo, quer por parte de várias oposições ao governo.

Leia-se o que se vem propondo muitas vezes em posts precipitados nas redes sociais. Embora não relevem de maiorias, mas de pequenos grupos ativistas, esses posts e respetivos comentários traduzem um sentimento e uma ideia que se vão tornando consensuais entre os participantes, em geral os faceboqueiros. O sentimento é o de que o modelo de Estado (“um só povo, uma só nação”) falhou. A ideia é a de que é preciso compreender e aceitar a lógica das antigas nações para se chegar a um Estado plural e a uma solução consensual. Estranhamente nunca se fala das dinâmicas regionais, por exemplo nas dinâmicas económicas regionais, ou nas assimetrias sociais de cada província, nem nas assimetrias entre regiões (atribuídas, muitas vezes, precipitadamente e de soslaio, a idiossincrasias da etnia local dominante) para também nessa base definirmos regiões, ou províncias, e respetivas representações e governações. Mas iremos aí ter mais tarde. É preciso ainda verificar alguns passos.

A consensual aparência de uma idealizada federação étnica implica muitos riscos, sem dúvida, caso não se defina bem cada passo a dar. É indesmentível que o modelo de Estado falhou. Mas as soluções propostas são bem mais perigosas do que cada região, ou cada província (e vai uma distância muito grande entre as duas palavras), serem governadas pelo partido e pelos dirigentes que, localmente, em eleições livres, forem escolhidos pela maioria dos votantes – a cada dois anos, ou quatro anos, por exemplo.

O primeiro perigo vem, mesmo, da mitificação das ‘antigas nações’. Eu não digo que não existiram, longe disso, também as estudei e estudo, mas que hoje se fala delas de uma forma vaga e mítica, para a qual a única definição avançada seria tribal. Essa definição étnica, feita a partir de uma pretensa identidade fixa partilhada por um grupo de pessoas ao longo dos séculos, imutável e não negociável, é uma falácia que ignora todo o dinamismo social de comunidades onde, por vezes, a própria genealogia pode ser mitificada e, por essa via, renegociada. Porém, trata-se de falácia popularíssima, fácil de colar ao nosso próprio corpo e que nos parece de uma evidência tão absoluta quanto aquilo tudo que julgamos ver bem com os olhos - e que, tanta vez, não vimos bem.

As antigas nações, em sua maioria esmagadora constituídas por falantes de línguas bantos, ou bantu, várias delas não tinham definição étnica estrita, resultaram de misturas em consequência de invasões terrestres, intracontinentais. Umas tiveram perfil étnico, outras não – como aconteceu com o Império do Mali, com o Reino de Gao, com o Grande Daomé, etc.. Certos reinos, como sabemos (o modelo repetiu-se em quase toda a Angola), resultaram, não só de migrações armadas (em que as armas de fogo faziam diferença decisiva), mas também de casamentos que indiciavam a ligação dos novos ocupantes com as elites anteriores. Isso é narrado, ficcionado e testemunhado por vários relatos, mais ou menos míticos, mas todos eles fundacionais, relativos a reinos que se formaram desde a margem sul do rio Zaire até, pelo menos, quase todo o centro do país.

Esses reinos não tinham fronteiras definidas. Havia zonas que eram, seguramente, de sua ocupação, controladas pelo soberano respetivo, mas os limites, as fronteiras, eram constantemente discutidos e desde logo na prestação anual de ‘presentes’ por parte das autoridades autárquicas, locais (os senhores de menores forças e populações sob comando). O que mais contava era o poder negocial de cada pequeno grupo e a argúcia do seu chefe, sendo os territórios a ocupar uma consequência disso. Veja-se o caso das fronteiras sul do reino do Congo, sobejamente conhecido e que foi aproveitado pela colonização portuguesa. Veja-se, de resto, como tal facto contribui para que as identidades fossem mais definidas por uma genealogia (com o respetivo culto dos antepassados) do que por uma pertença a um território específico, podendo mesmo deslocar-se as insígnias sagradas da linhagem quando tal se justificasse. 

Constituir, então, um Estado Federativo baseado, não nas atuais províncias, ou em regiões, mas nas antigas nações encontra, desde logo, esse primeiro obstáculo que é o de definir onde elas começavam e acabavam, quais as fronteiras que teremos por válidas, as de que época, definidas por quem e por quais procedimentos (referendos? negociações partidárias ou políticas?). 

Compare-se com a Europa, onde a ligação (de raiz indo-europeia) da genealogia com o território se tornou sagrada, inquestionável. Observe-se que só há muito poucos anos se consensualizou a pertença de certos territórios de fronteira aos respetivos países. Esse consenso, no entanto, resultou porque se criou uma União Europeia que funciona como guarda-chuvas acolhedor, onde as identidades transfronteiriças podiam encontrar alguma definição mais cómoda e os poderes nacionais esbarram se quiserem abusar. Isso mesmo se esperava (e espera?) que resolvesse as tensões derivadas da extensão do reino de Leão e Castela, depois também de Aragão, a quase toda a Península Ibérica. E são sintomáticas as tentativas de independência da Catalunha pelo efeito que têm na mesma Europa onde, por solidariedade governamental, a pretensão é rejeitada, mas onde se abrigam, tanto quanto possível, dirigentes e esperanças de uma solução favorável aos anseios da maioria dos catalães. Aliás, percebeu-se o mal-estar da União Europeia, não só com as tentativas independentistas, também com o reação do governo de Madrid...

Recorde-se como, fora da União Europeia mas ainda na Europa, nos seus extremos, rebentaram conflitos violentos, sanguinários mesmo, por disputas territoriais feitas em nome das antigas nações e que envolviam dinâmicas populacionais ignoradas ou mal dimensionadas pelos poderes absorventes, algumas delas implicando razões transterritoriais. Imagine-se, então, como seria entre nós, com amplos territórios desde sempre disputados por vários reinos e, ou, várias etnias (pois, por vezes, a unidade política era étnica, mas outras vezes não).

A conceção de um Estado federativo para Angola, se feita a partir de um eventual mapa étnico, tropeça ainda em mais problemas. Um deles é o de que, em várias cidades e certas zonas rurais, convivem mais do que uma etnia, havendo igualmente populações cruzadas, algumas em número significativo (por exemplo em Luanda e Benguela). Seria injusto e explosivo que uma das etnias, por contar com maior número de pessoas neste momento (e sem se saber em quem votariam tais pessoas, ou mesmo qual a definição delas etnicamente segura - se é que isso existe), seria perigoso, realmente, que uma etnia fosse dominar ou governar as outras – que, naturalmente, reagiriam contra. A riqueza trazida pela diversidade não teria expressão ao nível dos poderes locais, empobrecendo as dinâmicas regionais.

Um terceiro problema prende-se com a ideologia das etnias, uma verdadeira utopia étnica e uma espécie de fundamentalismo que se vem disseminando no meio de nós. Ela se alicerça sobre a idealização dos modelos políticos das tradições bantos (ou bantu), pese embora eles sejam diversificados e mutantes – do que o fundamentalismo étnico faz tábua rasa. Nessa idealização, porém, por força dos rituais e das crenças em que se alicerça o poder tradicional, não há propriamente escolha dos dirigentes por eleições democráticas e livres e a titulação de um chefe não pode ser discutida (só em casos extremos) enquanto ele viva. Isso choca diretamente com os anseios de liberdade e democracia que animavam a rejeição a José Eduardo dos Santos, sobretudo nos últimos anos. Entronizar um rei em nome de uma etnia e colocá-lo a governar uma região multiétnica por toda a vida parece-me desastroso e antidemocrático - digo e assumo com todas as letras.

A conceção (ou concepção, como escreviam os portugueses antigos) de um Estado federal para Angola deve, portanto, saber contornar as tentações do fundamentalismo étnico e basear-se nas dinâmicas económicas e sociais das regiões, bem como nas suas assimetrias a resolver e nas escolhas livres dos cidadãos por processos eleitorais de voto universal e individual. Por outro lado, para evitar as arbitrariedades governativas de possíveis caciques ou caudilhos locais, é preciso conceber qual ou quais os órgãos, democraticamente constituídos, que vigiariam e garantiriam a liberdade em cada província ou região, tanto quanto a correção de assimetrias regionais.

Por uma questão de segurança, também seria necessário que as Relações Externas, as Forças Armadas e outros aparelhos institucionais se mantivessem centralizados e nas mãos de pessoas escolhidas em votação nacional. Tarde ou cedo, o pendor para a federalização, a regionalização, ou qualquer outra forma de distribuição do poder pelo território nacional, há de levar-nos a tomar estas precauções e a conceber um Estado que se baseie na diversidade regional. É melhor tomar a tarefa em mãos agora (já não será cedo) e começar, imediatamente, com prudência e reflexão distanciada, a repensar o Estado angolano sob um critério pluriétnico e regionalista.


sexta-feira, 5 de abril de 2019

medalhões


A visita à Rússia do presidente João Lourenço era de esperar: por laços históricos anteriores e até agora mantidos; por laços pessoais anteriores e, quiçá, gratos; por aquilo que parece ser uma herança nas relações externas e se vai constituindo traço da diplomacia angolana: evitar alinhamentos extremos, feudais ou fanáticos (exceto algum excesso no início do partido único), ir jogando com 'um pau de dois bicos', mas até de vários bicos. 

Este último traço é louvável, parece-me. Para já, realista, pragmático e deixando em aberto, o mais possível, o leque de relações e do seu aprofundamento. A política externa salazarista foi essa e parece ter deixado marcas. Mas é um traço mais geral e Angola tem isso em comum, não só com o Portugal de hoje (muitas vezes, por força de acordos europeus, muito mais alinhado que Angola) e com o Brasil até 2018. Justamente no Brasil, as primeiras tentativas de abandonar essa política de equilíbrios diplomáticos consensuais deram mau resultado: opinião pública desfavorável, opinião internacional desfavorável e vastos setores fundamentais da vida social, económica, cívica e militar desapontados, mais do que isso, fazendo pressão para (no mínimo) moderar a 'viragem'.

Muitos países frágeis, ou não muito fortes internacionalmente, seguem essa estratégia diplomática também. Isso contribui, certamente, para a paz no mundo. Aplauso, portanto, para o presidente João Lourenço, que tem sabido aproveitar vantagens dos EUA e da Rússia. 

O que não me surpreende mas continua a chocar-me é a desvalorização total das condecorações. Isso também não constitui exclusivo de Angola, nem na lusofonia, nem no mundo. Cada vez mais o facto de se ser condecorado se tornou meramente decorativo, quando muito protocolar. E, se não, veja-se:

O que fez Putin por Angola desde que está no poder? Eu não consigo ver nada relevante na sua política externa que suscite aplauso ou consenso para a sua condecoração. O que significa ela, então? Mera troca de galhardetes, flâmulas, bandeirolas.