Celebra-se hoje, 2 de março. Porque nesse dia foram presas cinco militantes mulheres e mais penso que três homens. Lutavam contra o colonialismo tentando implantar uma 'região' (a famosa 1ª) militar ou libertada que implicava a passagem por zonas controladas pela FNLA e pelo seu GRAE (Governo Angolano Revolucionário no Exílio). A prisão deu brado, foi denunciada por muitos internacionalistas em todo o mundo e, na própria RDC, Tchisekedi interpelava um colega ministro sobre o assunto, chamando-lhe a atenção para que a FNLA e o GRAE se comportavam como 'um Estado dentro do Estado'.
Deolinda Rodrigues, a mais conhecida hoje dessas cinco militantes, escrevia poemas revolucionários, cartas mais interessantes que os poemas (incluindo uma correspondência com Martin Luther King) e um diário vibrante, que foi o seu confessionário mais fiel, até com posições indefensáveis, tanto quanto as mais avançadas. Entre os parágrafos mais avançados recordo aqueles em que se queixava do machismo no MPLA e da insistência de dirigentes do 'M' para que ela casasse e procriasse. Seu nome completo: Deolinda Rodrigues Francisco de Almeida. A partir do nome próprio, como é natural, os outros três são significativos do seu berço social, aquela zona entre Luanda e Malanje na qual se forjou uma identidade angolense, entre étnica e trans-étnica, entre racializada e antirracista, que marcou bastante o grupo decisor do MPLA até hoje, ou quase. Por exemplo "Frncisco de Almeida" (como sobrenome) desdobra-se em várias páginas do Boletim oficial do governo geral de Angola na segunda metade do século XIX.
Milagrosamente um saco cheio de papéis-espólio da militante foi guardado e, mais tarde, entregue a Roberto de Almeida, irmão de Deolinda, que depois, oportunamente, publicou penso que a maioria desses escritos, em livros hoje esgotados e sem versão digital.
No dia 2.3.1971, comemorando o "quarto aniversário da prisão das cinco militantes heroicas do MPLA e da OMA, Deolinda Rodrigues, Irene Cohen, Engrácia dos Santos, Tereza Afonso e Lucrécia Paim", o DIP (Depart. Informação e Propaganda) lançou um datiloscrito evocando o que se passou, incluindo duas citações (uma de "c. a." - talvez Costa Andrade; outra de Agostinho Neto) e quatro poemas militantes de Deolinda Rodrigues.
A capa é sintomática. No centro alargado uma figura de guerrilheiro, com arma ao ombro e o braço esquerdo apontando o rumo. Quer dizer: o homem, jovem mas com barba, indicando o caminho a seguir pelas mulheres, baseado (pensa-se) no exemplo destas heroínas. Não são elas, no dia que o futuro partido único instituiu como o das "mulheres angolanas", não lhes foi reconhecido pelo DIP e pelo 'Movimento' que apontassem o rumo, nem em nome delas qualquer outra mulher de destaque na luta de libertação, no combate por Angola, na cultura angolana. Era ao homem que tal papel estava reservado, no presente e no futuro. Elas nem sequer aparecem no 'pano de fundo', no cenário, que de resto inexiste.
Felizmente a posição da mulher no MPLA - e muito graças à sua capacidade política interna - foi sendo reconhecido, embora nunca ao ponto de alguma se atrever a candidatar-se à presidência pelo partido - como sucede na UNITA e na FNLA e em quase todos os outros partidos, com a já longínqua exceção, corajosa, de Anália da Victória Pereira (Simeão) e do seu PDL (Partido Democrático Liberal).
O documento de 1971 não deixou, porém, de ser sintomático do pensamento que dominava o partido até hoje no poder e, por vontade própria, perenemente, custe o que e o quanto custar. O 2 de março ficou sendo o dia da mulher angolana para a OMA e o MPLA. Havia outras datas que podiam ter servido, ou, melhor que tudo, manter a data mundializada, que não criaria divisões internas nem as acentuaria, fazendo por outro lado Angola participar claramente na luta pela emancipação feminina. O 'Partido' fez o oposto: vincou por esse dia a memória das que foram presas e mortas pelo inimigo interno, criando uma data divisora, não reunificadora. Devia e deve manter-se até hoje, e para o futuro, a memória desse lamentável incidente, exemplo a todos os títulos negativo. Mas, apesar do crime da FNLA, não podia ser esse o dia nacional da mulher angolana, porque essas mulheres, embora heroínas e mártires, apenas representavam uma das facções em luta pela independência e, depois, em luta pelo poder durante a guerra civil.
Impor uma data partidária como data nacional é prática típica dos sistemas totalitários de partido único (ou único na prática, pois há vezes - como na URSS - em que deixam formalmente existir partidos que só dão sinal público para apoiar o único). É, também, no nosso caso, petrificar e impor o apartheid ideológico e étnico sob o domínio do qual Angola ficou refém de um grupo sectário. Ignorando a prestação das mulheres 'dos outros', o contributo 'dos outros', e os crimes do partido no poder contras 'as outras' (bem como contra algumas das do seu campo), o MPLA está a dizer aos angolanos: conosco não vão mexer, isto é nosso.
Não há razão para que, depois de tantos anos afirmando os valores da democracia - mera formalidade - o MPLA não tenha percebido a absoluta necessidade, a obrigatoriedade, de escolher datas nacionais que realmente o sejam. Mantendo as datas partidárias como nacionais, neste como em como em outros casos igualmente já denunciados pelos partidos oposicionistas, o poder angolano e seu partido único demonstram que, de facto, não pretendem mais do que reduzir Angola à 'sua' Angola e nem sequer reconhecem que a tal 'sua' também já não é única hoje (felizmente). Angola ficou refém 'deles'.