terça-feira, 28 de maio de 2019

BNA baixa taxa de juro em Luanda


... para 15,50% (estava, ultimamente, em 15,75%). Segundo o jornal Valor económico, desde Maio de 2018 a taxa reduziu de 18% para o valor atual. É bom, sem dúvida, mas pouco. As economias, para se desenvolverem, precisam de taxas de juro baixas e isto é básico, não precisamos de diplomas académicos para saber. 

É um facto que uma taxa de juro muito baixa pode-nos trazer implicações negativas, igualmente conhecidas. Isso, porém, se dá a um nível muito mais baixo do que está agora em discussão e em economias com perfis diferentes da nossa. 

Aguardemos que se abandone a política asfixiante do juro alto, que de resto vem já... da instalação do Banco Nacional Ultramarino em Angola.



domingo, 19 de maio de 2019

Uma federação em Angola?



Há muitos anos que falo no federalismo como hipótese a considerar no desenho do futuro Estado angolano. Quando comecei a falar nisso, mais em recato, com amigos ou próximos, as reações não foram muito acolhedoras. O medo de desmembramento do Estado e de soltura das mil cabeças do tribalismo via na Federação o caminho para a erosão do próprio país. Em parte, ele tinha justificação e, por isso, eu me calava muitas vezes.

É certo que as fronteiras criadas sobre a rasura colonial das antigas nações atormentará sempre qualquer conceção do Estado em África. Todas as hipóteses, porém, devem ser postas sobre a mesa, desde que sejam discutidas com fundamento e rejeitadas quando não se tornem consensuais (em ambiente de livre discussão).

O que me parecia, desde então (mais especificamente: desde a segunda metade dos anos 80 do século passado), era que a solução monopartidária e ideológica rapidamente se esgotaria, enterrando consigo o conceito de nação que fundamentava. Aliás, o modelo de regime e de sistema político não tinha sido, sequer, votado pelo povo em liberdade. Como todos sabemos, a sua constituição resultou simplesmente das vitórias militares que um dos partidos armados foi somando sobre os outros com o apoio maciço de Cuba e, menos maciço mas não menos decisivo, da URSS. Uma parte do povo (não se sabe que percentagem) ficara realmente fora disso por opção, não concordava com o modelo, socialista, de partido único e de absoluta centralização administrativa. Uma significativa fatia da população angolana não sentiu essa opção como sua nem ninguém lhe perguntou o que sentia.

Entre amigos que eram confessos opositores civis do regime e do sistema, ainda assim uma reação prudente se impunha quando falássemos em federalismo. Porém me pareceu, desde sempre, que a solução federativa para Angola pode ocorrer evitando os perigos de desmembramento do país e, por outro lado, já nesse tempo me parecia que as tensões que viriam se podiam resolver, ou desarmar, através de uma república federal cautelosamente concebida.

A força dos problemas de cada região parece-me impor a solução federativa, conhecida por outros países africanos que não se evaporaram ainda, mesmo com a tentativa de secessão do Biafra na Nigéria. Quando foram as eleições de 1992, podíamos ter dado um passo, caso o regime aceitasse a nomeação dos governadores provinciais em função  das maiorias locais. O espectro da guerra e, mais uma vez, da desagregação do Estado – apesar de, manifestamente, a UNITA não estar interessada em ficar só com uma parte do país – serviram de alibi para rejeitar a pretensão desse partido, que em tal ponto era justa, justíssima. A guerra, como dolorosamente sabemos, veio a grassar à mesma (estaria, se não programada, pelo menos prevista por ambas as partes) e com sentimentos recrudescidos pela negativa dada à pretensão de o partido vencedor em cada província governar – embora subordinado ao poder central – essa mesma província. Realmente, porque havia de ser governada por um militante do partido derrotado nas urnas uma província de maioria da oposição? Porque havia, também, de se impor, aos concelhos onde a oposição detinha clara maioria, administradores nomeados pelo partido derrotado nesses concelhos? As populações então perceberam que o seu voto não servia para nada, fora tudo só uma farsa imposta por fora.

Caso tivéssemos adotado (ou, se preferem, adoptado) a solução proposta nesses anos, ao mesmo tempo em que formávamos forças armadas nacionais (e, portanto, desarmávamos as FALA), hoje teríamos governações regionais e tal facto iria, certamente, esbater as tensões étnicas que se avizinhavam, continuando hoje a agravar-se. Porque, nessa altura, não se tratava de uma Federação, nem sequer de uma regionalização programática, mas somente de deixar que a vontade expressa pelo povo de cada província fosse respeitada nessa província – aceitando, a nível nacional, a maioria nacional. Isso era, sem dúvida, melhor do que muito do que se vem propondo agora - quer por parte do governo, quer por parte de várias oposições ao governo.

Leia-se o que se vem propondo muitas vezes em posts precipitados nas redes sociais. Embora não relevem de maiorias, mas de pequenos grupos ativistas, esses posts e respetivos comentários traduzem um sentimento e uma ideia que se vão tornando consensuais entre os participantes, em geral os faceboqueiros. O sentimento é o de que o modelo de Estado (“um só povo, uma só nação”) falhou. A ideia é a de que é preciso compreender e aceitar a lógica das antigas nações para se chegar a um Estado plural e a uma solução consensual. Estranhamente nunca se fala das dinâmicas regionais, por exemplo nas dinâmicas económicas regionais, ou nas assimetrias sociais de cada província, nem nas assimetrias entre regiões (atribuídas, muitas vezes, precipitadamente e de soslaio, a idiossincrasias da etnia local dominante) para também nessa base definirmos regiões, ou províncias, e respetivas representações e governações. Mas iremos aí ter mais tarde. É preciso ainda verificar alguns passos.

A consensual aparência de uma idealizada federação étnica implica muitos riscos, sem dúvida, caso não se defina bem cada passo a dar. É indesmentível que o modelo de Estado falhou. Mas as soluções propostas são bem mais perigosas do que cada região, ou cada província (e vai uma distância muito grande entre as duas palavras), serem governadas pelo partido e pelos dirigentes que, localmente, em eleições livres, forem escolhidos pela maioria dos votantes – a cada dois anos, ou quatro anos, por exemplo.

O primeiro perigo vem, mesmo, da mitificação das ‘antigas nações’. Eu não digo que não existiram, longe disso, também as estudei e estudo, mas que hoje se fala delas de uma forma vaga e mítica, para a qual a única definição avançada seria tribal. Essa definição étnica, feita a partir de uma pretensa identidade fixa partilhada por um grupo de pessoas ao longo dos séculos, imutável e não negociável, é uma falácia que ignora todo o dinamismo social de comunidades onde, por vezes, a própria genealogia pode ser mitificada e, por essa via, renegociada. Porém, trata-se de falácia popularíssima, fácil de colar ao nosso próprio corpo e que nos parece de uma evidência tão absoluta quanto aquilo tudo que julgamos ver bem com os olhos - e que, tanta vez, não vimos bem.

As antigas nações, em sua maioria esmagadora constituídas por falantes de línguas bantos, ou bantu, várias delas não tinham definição étnica estrita, resultaram de misturas em consequência de invasões terrestres, intracontinentais. Umas tiveram perfil étnico, outras não – como aconteceu com o Império do Mali, com o Reino de Gao, com o Grande Daomé, etc.. Certos reinos, como sabemos (o modelo repetiu-se em quase toda a Angola), resultaram, não só de migrações armadas (em que as armas de fogo faziam diferença decisiva), mas também de casamentos que indiciavam a ligação dos novos ocupantes com as elites anteriores. Isso é narrado, ficcionado e testemunhado por vários relatos, mais ou menos míticos, mas todos eles fundacionais, relativos a reinos que se formaram desde a margem sul do rio Zaire até, pelo menos, quase todo o centro do país.

Esses reinos não tinham fronteiras definidas. Havia zonas que eram, seguramente, de sua ocupação, controladas pelo soberano respetivo, mas os limites, as fronteiras, eram constantemente discutidos e desde logo na prestação anual de ‘presentes’ por parte das autoridades autárquicas, locais (os senhores de menores forças e populações sob comando). O que mais contava era o poder negocial de cada pequeno grupo e a argúcia do seu chefe, sendo os territórios a ocupar uma consequência disso. Veja-se o caso das fronteiras sul do reino do Congo, sobejamente conhecido e que foi aproveitado pela colonização portuguesa. Veja-se, de resto, como tal facto contribui para que as identidades fossem mais definidas por uma genealogia (com o respetivo culto dos antepassados) do que por uma pertença a um território específico, podendo mesmo deslocar-se as insígnias sagradas da linhagem quando tal se justificasse. 

Constituir, então, um Estado Federativo baseado, não nas atuais províncias, ou em regiões, mas nas antigas nações encontra, desde logo, esse primeiro obstáculo que é o de definir onde elas começavam e acabavam, quais as fronteiras que teremos por válidas, as de que época, definidas por quem e por quais procedimentos (referendos? negociações partidárias ou políticas?). 

Compare-se com a Europa, onde a ligação (de raiz indo-europeia) da genealogia com o território se tornou sagrada, inquestionável. Observe-se que só há muito poucos anos se consensualizou a pertença de certos territórios de fronteira aos respetivos países. Esse consenso, no entanto, resultou porque se criou uma União Europeia que funciona como guarda-chuvas acolhedor, onde as identidades transfronteiriças podiam encontrar alguma definição mais cómoda e os poderes nacionais esbarram se quiserem abusar. Isso mesmo se esperava (e espera?) que resolvesse as tensões derivadas da extensão do reino de Leão e Castela, depois também de Aragão, a quase toda a Península Ibérica. E são sintomáticas as tentativas de independência da Catalunha pelo efeito que têm na mesma Europa onde, por solidariedade governamental, a pretensão é rejeitada, mas onde se abrigam, tanto quanto possível, dirigentes e esperanças de uma solução favorável aos anseios da maioria dos catalães. Aliás, percebeu-se o mal-estar da União Europeia, não só com as tentativas independentistas, também com o reação do governo de Madrid...

Recorde-se como, fora da União Europeia mas ainda na Europa, nos seus extremos, rebentaram conflitos violentos, sanguinários mesmo, por disputas territoriais feitas em nome das antigas nações e que envolviam dinâmicas populacionais ignoradas ou mal dimensionadas pelos poderes absorventes, algumas delas implicando razões transterritoriais. Imagine-se, então, como seria entre nós, com amplos territórios desde sempre disputados por vários reinos e, ou, várias etnias (pois, por vezes, a unidade política era étnica, mas outras vezes não).

A conceção de um Estado federativo para Angola, se feita a partir de um eventual mapa étnico, tropeça ainda em mais problemas. Um deles é o de que, em várias cidades e certas zonas rurais, convivem mais do que uma etnia, havendo igualmente populações cruzadas, algumas em número significativo (por exemplo em Luanda e Benguela). Seria injusto e explosivo que uma das etnias, por contar com maior número de pessoas neste momento (e sem se saber em quem votariam tais pessoas, ou mesmo qual a definição delas etnicamente segura - se é que isso existe), seria perigoso, realmente, que uma etnia fosse dominar ou governar as outras – que, naturalmente, reagiriam contra. A riqueza trazida pela diversidade não teria expressão ao nível dos poderes locais, empobrecendo as dinâmicas regionais.

Um terceiro problema prende-se com a ideologia das etnias, uma verdadeira utopia étnica e uma espécie de fundamentalismo que se vem disseminando no meio de nós. Ela se alicerça sobre a idealização dos modelos políticos das tradições bantos (ou bantu), pese embora eles sejam diversificados e mutantes – do que o fundamentalismo étnico faz tábua rasa. Nessa idealização, porém, por força dos rituais e das crenças em que se alicerça o poder tradicional, não há propriamente escolha dos dirigentes por eleições democráticas e livres e a titulação de um chefe não pode ser discutida (só em casos extremos) enquanto ele viva. Isso choca diretamente com os anseios de liberdade e democracia que animavam a rejeição a José Eduardo dos Santos, sobretudo nos últimos anos. Entronizar um rei em nome de uma etnia e colocá-lo a governar uma região multiétnica por toda a vida parece-me desastroso e antidemocrático - digo e assumo com todas as letras.

A conceção (ou concepção, como escreviam os portugueses antigos) de um Estado federal para Angola deve, portanto, saber contornar as tentações do fundamentalismo étnico e basear-se nas dinâmicas económicas e sociais das regiões, bem como nas suas assimetrias a resolver e nas escolhas livres dos cidadãos por processos eleitorais de voto universal e individual. Por outro lado, para evitar as arbitrariedades governativas de possíveis caciques ou caudilhos locais, é preciso conceber qual ou quais os órgãos, democraticamente constituídos, que vigiariam e garantiriam a liberdade em cada província ou região, tanto quanto a correção de assimetrias regionais.

Por uma questão de segurança, também seria necessário que as Relações Externas, as Forças Armadas e outros aparelhos institucionais se mantivessem centralizados e nas mãos de pessoas escolhidas em votação nacional. Tarde ou cedo, o pendor para a federalização, a regionalização, ou qualquer outra forma de distribuição do poder pelo território nacional, há de levar-nos a tomar estas precauções e a conceber um Estado que se baseie na diversidade regional. É melhor tomar a tarefa em mãos agora (já não será cedo) e começar, imediatamente, com prudência e reflexão distanciada, a repensar o Estado angolano sob um critério pluriétnico e regionalista.