Há muitos anos que falo no federalismo como hipótese a
considerar no desenho do futuro Estado angolano. Quando comecei a falar nisso,
mais em recato, com amigos ou próximos, as reações não foram muito acolhedoras.
O medo de desmembramento do Estado e de soltura das mil cabeças do tribalismo
via na Federação o caminho para a erosão do próprio país. Em parte, ele tinha
justificação e, por isso, eu me calava muitas vezes.
É certo que as fronteiras criadas sobre a rasura colonial das
antigas nações atormentará sempre qualquer conceção do Estado em África. Todas
as hipóteses, porém, devem ser postas sobre a mesa, desde que sejam discutidas
com fundamento e rejeitadas quando não se tornem consensuais (em ambiente de
livre discussão).
O que me parecia, desde então (mais especificamente: desde a
segunda metade dos anos 80 do século passado), era que a solução monopartidária
e ideológica rapidamente se esgotaria, enterrando consigo o conceito de nação
que fundamentava. Aliás, o modelo de regime e de sistema político não tinha
sido, sequer, votado pelo povo em liberdade. Como todos sabemos, a sua constituição
resultou simplesmente das vitórias militares que um dos partidos armados foi
somando sobre os outros com o apoio maciço de Cuba e, menos maciço mas não menos
decisivo, da URSS. Uma parte do povo (não se sabe que percentagem) ficara
realmente fora disso por opção, não concordava com o modelo, socialista, de
partido único e de absoluta centralização administrativa. Uma significativa
fatia da população angolana não sentiu essa opção como sua nem ninguém lhe
perguntou o que sentia.
Entre amigos que eram confessos opositores civis do regime e
do sistema, ainda assim uma reação prudente se impunha quando falássemos em
federalismo. Porém me pareceu, desde sempre, que a solução federativa para
Angola pode ocorrer evitando os perigos de desmembramento do país e, por outro
lado, já nesse tempo me parecia que as tensões que viriam se podiam resolver,
ou desarmar, através de uma república federal cautelosamente concebida.
A força dos problemas de cada região parece-me impor a
solução federativa, conhecida por outros países africanos que não se evaporaram
ainda, mesmo com a tentativa de secessão do Biafra na Nigéria. Quando foram as
eleições de 1992, podíamos ter dado um passo, caso o regime aceitasse a
nomeação dos governadores provinciais em função
das maiorias locais. O espectro da guerra e, mais uma vez, da
desagregação do Estado – apesar de, manifestamente, a UNITA não estar
interessada em ficar só com uma parte do país – serviram de alibi para rejeitar a pretensão desse
partido, que em tal ponto era justa, justíssima. A guerra, como dolorosamente
sabemos, veio a grassar à mesma (estaria, se não programada, pelo menos prevista por ambas as partes) e com sentimentos recrudescidos pela
negativa dada à pretensão de o partido vencedor em cada província governar – embora
subordinado ao poder central – essa mesma província. Realmente, porque havia de
ser governada por um militante do partido derrotado nas urnas uma província de
maioria da oposição? Porque havia, também, de se impor, aos concelhos onde a
oposição detinha clara maioria, administradores nomeados pelo partido derrotado
nesses concelhos? As populações então perceberam que o seu voto não servia para
nada, fora tudo só uma farsa imposta por fora.
Caso tivéssemos adotado (ou, se preferem, adoptado) a solução proposta nesses anos, ao
mesmo tempo em que formávamos forças armadas nacionais (e, portanto,
desarmávamos as FALA), hoje teríamos governações regionais e tal facto iria,
certamente, esbater as tensões étnicas que se avizinhavam, continuando hoje a agravar-se. Porque, nessa
altura, não se tratava de uma Federação, nem sequer de uma regionalização
programática, mas somente de deixar que a vontade expressa pelo povo de cada
província fosse respeitada nessa província – aceitando, a nível nacional, a
maioria nacional. Isso era, sem dúvida, melhor do que muito do que se vem propondo
agora - quer por parte do governo, quer por parte de várias oposições ao governo.
Leia-se o que se vem propondo muitas vezes em posts precipitados nas redes sociais. Embora não relevem de maiorias, mas de pequenos grupos ativistas, esses posts e respetivos comentários traduzem
um sentimento e uma ideia que se vão tornando consensuais entre os
participantes, em geral os faceboqueiros.
O sentimento é o de que o modelo de Estado (“um só povo, uma só nação”) falhou.
A ideia é a de que é preciso compreender e aceitar a lógica das antigas nações
para se chegar a um Estado plural e a uma solução consensual. Estranhamente nunca
se fala das dinâmicas regionais, por exemplo nas dinâmicas económicas
regionais, ou nas assimetrias sociais de cada província, nem nas assimetrias entre regiões (atribuídas, muitas vezes, precipitadamente e de soslaio, a idiossincrasias da etnia local dominante) para também nessa base
definirmos regiões, ou províncias, e respetivas representações e governações. Mas
iremos aí ter mais tarde. É preciso ainda verificar alguns passos.
A consensual aparência de uma idealizada federação étnica implica
muitos riscos, sem dúvida, caso não se defina bem cada passo a dar. É indesmentível
que o modelo de Estado falhou. Mas as soluções propostas são bem mais perigosas
do que cada região, ou cada província (e vai uma distância muito grande entre
as duas palavras), serem governadas pelo partido e pelos dirigentes que,
localmente, em eleições livres, forem escolhidos pela maioria dos votantes – a cada
dois anos, ou quatro anos, por exemplo.
O primeiro perigo vem, mesmo, da mitificação das ‘antigas
nações’. Eu não digo que não existiram, longe disso, também as estudei e estudo, mas que hoje se fala delas de uma forma
vaga e mítica, para a qual a única definição avançada seria tribal. Essa definição étnica, feita a partir de uma pretensa identidade fixa
partilhada por um grupo de pessoas ao longo dos séculos, imutável e não negociável, é uma falácia que ignora todo o dinamismo social de comunidades onde, por vezes, a própria genealogia pode ser mitificada e, por essa via, renegociada. Porém, trata-se de falácia popularíssima, fácil de colar ao nosso próprio corpo e que nos
parece de uma evidência tão absoluta quanto aquilo tudo que julgamos ver bem
com os olhos - e que, tanta vez, não vimos bem.
As antigas nações, em sua maioria esmagadora constituídas por falantes de línguas bantos, ou bantu, várias delas não tinham definição
étnica estrita, resultaram de misturas em consequência de invasões terrestres,
intracontinentais. Umas tiveram perfil étnico, outras não – como aconteceu com
o Império do Mali, com o Reino de Gao, com o Grande Daomé, etc.. Certos reinos,
como sabemos (o modelo repetiu-se em quase toda a Angola), resultaram, não só
de migrações armadas (em que as armas de fogo faziam diferença decisiva), mas
também de casamentos que indiciavam a ligação dos novos ocupantes com as elites
anteriores. Isso é narrado, ficcionado e testemunhado por vários relatos, mais
ou menos míticos, mas todos eles fundacionais, relativos a reinos que se formaram
desde a margem sul do rio Zaire até, pelo menos, quase todo o centro do país.
Esses reinos não tinham fronteiras definidas. Havia zonas que
eram, seguramente, de sua ocupação, controladas pelo soberano respetivo, mas os
limites, as fronteiras, eram constantemente discutidos e desde logo na
prestação anual de ‘presentes’ por parte das autoridades autárquicas, locais (os senhores de menores forças e populações sob comando). O que mais contava era o poder negocial de cada pequeno grupo e a argúcia do seu chefe, sendo os territórios a ocupar uma consequência disso. Veja-se o caso das
fronteiras sul do reino do Congo, sobejamente conhecido e que foi aproveitado
pela colonização portuguesa. Veja-se, de resto, como tal facto contribui para que as identidades fossem mais definidas por uma genealogia (com o respetivo culto dos antepassados) do que por uma pertença a um território específico, podendo mesmo deslocar-se as insígnias sagradas da linhagem quando tal se justificasse.
Constituir, então, um Estado Federativo baseado, não nas
atuais províncias, ou em regiões, mas nas antigas nações encontra, desde logo,
esse primeiro obstáculo que é o de definir onde elas começavam e acabavam,
quais as fronteiras que teremos por válidas, as de que época, definidas por
quem e por quais procedimentos (referendos? negociações partidárias ou políticas?).
Compare-se com a Europa, onde a ligação (de raiz indo-europeia) da genealogia com o território se tornou sagrada, inquestionável. Observe-se que só há muito poucos anos se consensualizou a
pertença de certos territórios de fronteira aos respetivos países. Esse consenso,
no entanto, resultou porque se criou uma União Europeia que funciona como
guarda-chuvas acolhedor, onde as identidades transfronteiriças podiam encontrar
alguma definição mais cómoda e os poderes nacionais esbarram se quiserem abusar.
Isso mesmo se esperava (e espera?) que resolvesse as tensões derivadas da
extensão do reino de Leão e Castela, depois também de Aragão, a quase toda a
Península Ibérica. E são sintomáticas as tentativas de independência da Catalunha pelo efeito que têm na mesma Europa onde, por solidariedade governamental, a pretensão é rejeitada, mas onde se abrigam, tanto quanto possível, dirigentes e esperanças de uma solução favorável aos anseios da maioria dos catalães. Aliás, percebeu-se o mal-estar da União Europeia, não só com as tentativas independentistas, também com o reação do governo de Madrid...
Recorde-se como, fora da União Europeia mas ainda na Europa,
nos seus extremos, rebentaram conflitos violentos, sanguinários mesmo, por
disputas territoriais feitas em nome das antigas nações e que envolviam dinâmicas populacionais ignoradas ou mal dimensionadas pelos poderes absorventes, algumas delas implicando razões transterritoriais. Imagine-se, então,
como seria entre nós, com amplos territórios desde sempre disputados por vários
reinos e, ou, várias etnias (pois, por vezes, a unidade política era étnica,
mas outras vezes não).
A conceção de um Estado federativo para Angola, se feita a
partir de um eventual mapa étnico, tropeça ainda em mais problemas. Um deles é
o de que, em várias cidades e certas zonas rurais, convivem mais do que uma etnia,
havendo igualmente populações cruzadas, algumas em número significativo (por exemplo
em Luanda e Benguela). Seria injusto e explosivo que uma das etnias, por contar
com maior número de pessoas neste momento (e sem se saber em quem votariam tais pessoas, ou mesmo qual a definição delas etnicamente segura - se é que isso existe), seria perigoso, realmente, que uma etnia fosse dominar ou governar as outras –
que, naturalmente, reagiriam contra. A riqueza trazida pela diversidade não teria expressão ao nível dos poderes locais, empobrecendo as dinâmicas regionais.
Um terceiro problema prende-se com a ideologia das etnias,
uma verdadeira utopia étnica e uma espécie de fundamentalismo que se vem
disseminando no meio de nós. Ela se alicerça sobre a idealização dos modelos
políticos das tradições bantos (ou bantu),
pese embora eles sejam diversificados e mutantes – do que o fundamentalismo étnico faz tábua rasa. Nessa idealização, porém,
por força dos rituais e das crenças em que se alicerça o poder tradicional, não
há propriamente escolha dos dirigentes por eleições democráticas e livres e a
titulação de um chefe não pode ser discutida (só em casos extremos) enquanto
ele viva. Isso choca diretamente com os anseios de liberdade e democracia que
animavam a rejeição a José Eduardo dos Santos, sobretudo nos últimos anos. Entronizar
um rei em nome de uma etnia e colocá-lo a governar uma região multiétnica por
toda a vida parece-me desastroso e antidemocrático - digo e assumo com todas as letras.
A conceção (ou concepção, como escreviam os portugueses
antigos) de um Estado federal para Angola deve, portanto, saber contornar as
tentações do fundamentalismo étnico e basear-se nas dinâmicas económicas e
sociais das regiões, bem como nas suas assimetrias a resolver e nas escolhas livres dos cidadãos por processos eleitorais de voto universal e individual. Por outro lado,
para evitar as arbitrariedades governativas de possíveis caciques ou caudilhos
locais, é preciso conceber qual ou quais os órgãos, democraticamente
constituídos, que vigiariam e garantiriam a liberdade em cada província ou
região, tanto quanto a correção de assimetrias regionais.
Por uma questão de segurança, também seria necessário que as
Relações Externas, as Forças Armadas e outros aparelhos institucionais se
mantivessem centralizados e nas mãos de pessoas escolhidas em votação nacional.
Tarde ou cedo, o pendor para a federalização, a regionalização, ou qualquer
outra forma de distribuição do poder pelo território nacional, há de levar-nos
a tomar estas precauções e a conceber um Estado que se baseie na diversidade
regional. É melhor tomar a tarefa em mãos agora (já não será cedo) e começar,
imediatamente, com prudência e reflexão distanciada, a repensar o Estado angolano sob um critério pluriétnico e regionalista.